Usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nosso portal, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao continuar navegando, você concorda com este monitoramento. Leia mais na nossa Política de Privacidade.

18 de setembro de 2024

Quem matou Beatriz?


Por Kathrein Silva Publicado 09/08/2024
Ouvir: 00:00
PNG – 2024-08-09T102949.168
Foto: Divulgação

Leia a coluna de Bianca Benemann, escrivã da Polícia Civil e apresentadora do programa Elas por Elas, transmitido toda quarta-feira através da Clic Rádio.

A escrita é, por vezes, a única forma de elaborar as dores que rotineiramente nos deparamos. A cada ano aumentam os crimes contra mulheres, mas serão os agressores os únicos culpados? A que ponto a cultura patriarcal não nos mata?

A crônica que escrevo é um compilado dessas dores, uma forma de organizar o turbilhão de emoções de conviver com vítimas de violência.

Heterocentrismo

Era um lindo dia de sol quando Joana conheceu Alencar, homem trabalhador, honrado e cumpridor de seus deveres. Foi amor à primeira vista, Joana finalmente se sentiu escolhida pela sorte. E no meio de tanta paixão, não é que veio uma barriga? Já, já Joana e Alencar montaram seu cantinho e tal não foi a surpresa quando descobriram que eram dois, ou melhor: duas, e de uma vez só, isso é que é felicidade.

Joana alegre, Alencar orgulhoso do duplo gol marcado. Roupinhas cor de rosa, lençóis cor de rosa, mamadeiras cor de rosa, tudo organizado para chegada das princesas. Joana, olhando o quartinho pronto pensou que se as filhas eram princesas, certamente seria ela a rainha, sorrindo ao imaginar a cena: uma neném no seu colo, outra no colo de Alencar, ambas dormindo e eles se olhando apaixonadamente.

Mas tudo começou a mudar numa madrugada fria de julho, quando Joana sentiu as dores do parto. No hospital, nasceu a primeira, grande, rosada e bem bochechuda, chamariam de Vitória a menina, mas a segunda nada de vir, força, força, gritava o médico:

“Deixa de ser mole! Para fazer gostosinho tu foi faceira, agora fica embromando.”

Joana, assustada, fez força, mas tanta força que Beatriz nasceu. Quando viu a criança tomou um susto, a menina era magrinha de um amarelo arroxeado assustador. Mas, mesmo assim, respirou aliviada, olhando suas meninas. Pronto agora elas iriam para o quarto cor de rosa e o pesadelo há pouco vivido cairia no esquecimento.

Mas foi só chegar em casa e Beatriz começou a chorar, Joana a acudir a menina e Alencar a perguntar qual seria a hora da janta. Que janta que nada, Beatriz não dava folga, chorava dia e noite, quando cansava, era Vitória quem acordava. Alencar cada dia mais irritado por não ganhar a atenção merecida como homem da casa. Ao contrário. Chegava em casa e a sinfonia de Beatriz não dava paz. Cansou rapidinho daquilo e foi logo dizendo a Joana que se mudasse para o quarto cor de rosa e fechasse a porta, pois ele, como homem trabalhador, tinha que dormir e não poderia se dar ao luxo de passar o dia inteiro em casa.

E assim foram os dias de Joana, privada do sono, viu ruir seu conto de fadas, nada de príncipe, nada de família. Sozinha, seminua, com seus peitos de fora a cuidar daquelas duas crianças, tendo por trilha sonora desse filme fracassado o choro contínuo de Beatriz.

Até que cega de cansaço, desesperança e abandono, num ato de fúria com a injustiça de sua vida, Joana balançou Beatriz, sacudiu o bebê, ao menos aquela criança tinha que parar de chorar, foi tanto o sacolejo que Beatriz silenciou. Joana, ao perceber o acontecido, em desespero gritava que havia matado a menina, e toda a ajuda a ela negada veio de uma vez só, mas agora para lhe amaldiçoar e, aos gritos de assassina, prender a maldita em flagrante.

É importante dizer que Joana nunca mais teve paz, afinal presidiária que mata filho tem mesmo que apanhar, é como estuprador em cadeia masculina, todo dia um pouquinho. Já Alencar, homem honrado e trabalhador, casou-se de novo e hoje a nova esposa cria Vitória a quem Joana foi condenada a prisão perpétua de nunca mais a ver.

E depois de tudo, só resta uma pergunta: quem matou Beatriz?